quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Clarice Lispector, muito além das frases de efeito dos sites de relacionamento.

Ando lendo os romances da Clarice. Ela é maravilhosa. Um exemplo de determinação, além de possuir uma arte única. Seus romances são introspectivos e reais ao mesmo tempo, sua linguagem é rica, incomparável. Toda a sensibilidade que aquela mulher possuiu se traduz em seus romances. Acredito que nem ela sabia como seus livros ajudaram e ajudam muita gente a ver a vida além do óbvio material.
Não sei, talvez ela não conhecesse tantas mulheres como ela, uma pessoa ímpar.Ela é perita no ser humano e suas emoções.Brinca de estar gente, pois SER é um desafio delicioso que ela aborda em suas crônicas e livros.
Como Clarice inspira sem forçar a barra! Ela era sensível, comparava suas personagens com bichos, mas pra mim, tanto suas personagens e ela própria eram “gente demais”, isso sim. Clarice traduzia a alma do ser humano em palavras, com uma facilidade assustadora. Ela não viveu apenas uma vida, viveu várias... Acho que ela chorou muito mas sorriu mais ainda! É um exemplo de mulher, uma guerreira antes mesmo de nascer, foi e ainda é um mistério para alguns. Ela não foi linear, não foi mais uma que seguiu o comportamento bovino da grande massa, se destacou em muitos aspectos (vale à pena dar uma lida na sua biografia completa também). Clarice nasceu e esteve disposta a aprender a todo momento, não imagino atitude mais digna que essa.
Observando uma foto dela, reparei no seu olhar. Não apenas o formato dos olhos, grandes e gateados. Eu pude jurar, como na própria biografia dela menciona, que olhava para um gato persa. Sempre achei os gatos um tanto misteriosos, silenciosos e mais inteligentes do que parecem. Os gatos provocam uma ligeira desconfiança. E agora comparo uma musa da literatura com um bichano... Tenho que admitir, a semelhança é escancarada. Impossível ler o olhar da Clarice. Quando ainda jovem sustentava um ar mais delicado, porém misterioso. Em todas as fotos dela, já mais velha, esse mesmo olhar sofre uma sutil transformação. Ficou mais pesado, seguro e até desafiador. Imagino que nesse retrato mais madura ela devia ter na faixa dos 50 pra cima... Clarice, enfim estava decidida de si e tomara sua forma mais original e experiente, ao menos na maior parte do tempo, acho eu.
Observo que essa mudança no olhar ocorre com todos nós. Principalmente nas mulheres. Uma vez li uma crítica numa revista sobre mulheres que exageravam nas plásticas no rosto. Deram o exemplo de uma mulher que com quase 80 anos queria ostentar o mesmo rosto dos 20. A colunista então ironiza: “Uma mulher com rosto de moça e olhar de senhora”. É verdade, o olhar não há como disfarçar. Ele muda, amadure.

No mais, fica a dica para os livros dela. Vale a pena sempre!

sábado, 11 de dezembro de 2010

"Brincadeira de Detetives". (Um pedacinho da história).

Ela era uma criança pensativa, compenetrada com assuntos desinteressantes para seus coleguinhas da sua idade, quase uma adulta solitária. Simone não tinha oito anos, tinha trinta. Como menina que se descobria ser, era infantil, mimada e intolerante com as brincadeiras e peças, tão naturais, que a vida lhe pregava. Sentia-se uma vítima da solidão que aquele casarão, onde vivia, lhe trazia, apreciava os cantos das paredes brancas, recém pintadas, com ótica de artista, imaginava pessoas, mortes, nascimentos. Caminhava olhando para os pés e quando fingia olhar para frente, carregava o peso de uma vida inteira no olhar, apesar de ser apenas uma menina, das pernas levemente arqueadas. Era séria, verdade. Mas também ria e gostava de gargalhar. Simone pedia cócegas ao pai, lhe arrancava os cabelos brancos do peito, comia pão caseiro e tomava leite recém tirado da vaca. No seu íntimo, ela sabia que sabia demais. E isso a incomodava. Era uma sensação triste ter a consciência das suas ausências, principalmente quando conseguia prever o futuro, e isso, ela não ousava contar a ninguém. Nem mesmo pro seu irmão, Rodrigo. Rodrigo era um pouco mais velho que Simone, mas ela tinha uma intrigante sensação que ele sentia o vento forte, do sítio em que brincavam, com a intensidade certa e ela não. Ela o amava, profundamente. Admirava a calma dele depois do nervosismo, os desenhos que ele fazia tão diferente de todo mundo que ela conhecia, o carinho com que ele a protegia e a paciência. Simone almejava, com toda sua tolice e amargura, ser um dia, quem sabe, como ele.
Existia uma brincadeira que Simone e seu irmão faziam, chamada de detetive. Toda vez que eles pegavam os livros do pai e iam a procura de mistérios no casarão, Simone esquecia um pouco da sua dor e voltava a ser criança. Rodrigo conseguia espantar os medos dela, mostrava outro universo escondido entre as paredes altas do casarão, que não fossem os ecos dos pensamentos céticos ou a sensação agoniante da ausência da mãe. Para Simone, Rodrigo era um herói protetor, um menino de coração bom que a fazia matar a saudade do futuro que ela ainda não conhecia.